Rafael Brunhara
5 min readOct 1, 2017
Odisseu, Agamêmnon, e Tersites.

Tersites é apresentado por Homero como o homem mais feio que já pisou em Troia. Como se espera, a feiura física desse homem também espelha a feiura de sua alma. Tudo o que Tersites sabe é dirigir insultos contra as grandes potestades do exército grego: seus alvos favoritos são Aquiles e Odisseu, mas quando faz sua primeira (e única) aparição na Ilíada, ele volta as suas farpas contra Agamêmnon, o chefe da expedição contra Troia.

Tersites não é um herói, tampouco um soldado importante: nada nos é dito sobre sua ascendência ou sua terra natal, como é comum na descrição dos heróis homéricos (uma informação que deve ser relativizada, contudo, pois algumas fontes dizem que ele seria primo de Diomedes, um dos principais heróis da guerra). Detestado por todos, sua única atividade no exército é provocar o riso dos companheiros.

Mas, embora Tersites seja um tagarela (akritomúthes), o próprio Odisseu o reconhece como um bom orador (Ilíada, Canto 2, v.246), em grego, lýgus, um adjetivo frequentemente atribuído às Musas, deusas da palavra e da poesia. Podemos imaginar que o problema de Tersites não esteja em suas falas: na Ilíada ele ataca Agamêmnon por ser um mau chefe, que acabara de se desentender com o melhor guerreiro grego, Aquiles, e estava pondo toda a guerra a perder por sua ganância, cobiça e covardia. Não são termos muito diferentes dos quais o próprio Aquiles utiliza para atacar Agamêmnon, no mesmo poema…a desmedida de Tersites está primeiro na sua incapacidade de reconhecer o aidos, termo da ética da Ilíada e que pode se traduzir por “respeito” e envolve a ideia de reconhecer e agir de acordo com o seu lugar em uma estrutura social altamente hierarquizada. Tersites não respeita os reis, e é por isso que é punido: na Ilíada, Odisseu o açoita por disparar impropérios a Agamêmnon. Ele, um homem inferior, não pode desafiar alguém mais forte.

E é justamente a boca desmedida de Tersites que causará a sua morte: perto do final da Guerra de Troia, em um de seus desaforos habituais, tira a paciência de Aquiles, que o mata com um único soco (é surpreendente, há de se convir, que ele tenha sobrevivido aos dez anos da Guerra de Troia sendo tão frágil…).

A morte de Tersites retratada na Tabula Iliaca Capitolina, relevo de mármore contendo episódios da Guerra de Troia.

Um dos autores que contou a morte de Tersites foi Quinto de Esmirna na epopeia Continuação de Homero, possivelmente datada do séc. III d.C. Seu relato é tardio, mas é um dos mais completos e parece imitar o que estaria no poema “Etiópida” uma epopeia arcaica pertencente ao Ciclo Épico (poemas que narram eventos da Guerra de Troia anteriores ou posteriores à Ilíada). A Etiópida narraria as últimas batalhas e a morte de Aquiles.

Chama a atenção que a passagem enaltece a figura de Aquiles em relação a de Odisseu, ou ao menos as distingue. O herói máximo da Ilíada e o herói máximo da Odisseia eram frequentemente comparados na Antiguidade, não só para determinar qual tipo de heroísmo era o melhor, mas também como uma manobra usada para afirmar qual era a melhor tradição poética, aquela da Ilíada ou aquela da Odisseia.

Não seria estranho que Quinto de Esmirna tivesse feito uso desse expediente, para assinalar a superioridade de Aquiles sobre Odisseu com uma passagem que remete a um raro momento da Ilíada em que o herói de Ítaca assume uma posição de destaque. É de se pensar se o trecho da morte de Tersites já estaria presente na Etiópida e, mostrando o quanto Aquiles era mais poderoso e irascível do que Odisseu, aproximava-a dos valores, pressupostos e talvez do estilo da Ilíada.

O contexto da cena é o seguinte: Aquiles acaba de matar Pentesileia em combate, rainha amazona que chegara com seus exércitos para auxiliar os troianos. Os gregos espoliam os cadáveres, praxe depois de cada combate. Mas Aquiles não: ele passa a admirar Pentesileia, tombada na poeira, talvez vendo na natureza paradoxal dela, enfatizada pela expressão “sedutora força física”, eratón sthenos (v.719) um duplo feminino de si mesmo. Eis que surge Tersites, acusando-o de ser excessivamente louco por mulheres, um perigo que, afinal, teria causado toda a Guerra de Troia…

Quinto de Esmirna, Continuação de Homero, Livro I, versos 717–766

Então os filhos mavórcios de Argivos[1] valorosos

Põem-se a saquear pressurosos sangrentas armas de mortos.

De toda a parte acorriam. Mas o Pelida[2] fundo se doía:

admirava a sedutora força da dama, no pó.

Por isso lhe consumiam o peito agonias funestas

Iguais a antes quando domado Pátroclo seu amigo[3].

Mas Tersites cara a cara com más palavras vitupera:

“Aquiles de coração horrendo! Que nume te ilude

o ânimo no peito por essa Amazona desgraçada?

Contra nós dois ela ansiava maquinar males terríveis!

No fundo do coração tu és um mulherengo,

pensas nela como esposa prudente, uma noiva

cortejada com presentes, desejoso de casar!

Ela que deveria tê-lo ferido na luta primeiro, com a lança,

já que o tempo todo teu coração delira com fêmeas,

e não interessam mais ao teu destrutivo espírito

feitos gloriosos de virtude, quando vês uma mulher.

Maldito! Onde estão agora tua força e inteligência?

Onde a força daquele rei sem censura? Não sabes

Quanta dor veio aos Troianos por desejar mulheres?

Nada mais terrível para os mortais do que o prazer

de lançar-se ao leito, que faz insensato o homem,

por mais prudente que seja. Só o esforço outorga glória.

Para um lanceiro a glória da vitória e as proezas de Ares

são prazeres, é o covarde quem gosta de leito feminino.”

Falou, vituperando muito. Supercolérico o ânimo

Do animoso Pelida. Súbito, com punho potente

Deu-lhe um soco no queixo; de uma só vez todos

os dentes se espalharam sobre a terra. Ele mesmo

caiu de cabeça; da sua boca o sangue borbotava.

Imediatamente foi-se dos membros a vida frágil

Desse homem insignificante. Alegra-se a tropa:

Vituperava-os demais com brutos impropérios,

Injurioso ser! Era a vergonha dos Dânaos.

Eis a a fala entre os argivos céleres em Ares:

“Não é bom que fracos ultrajem reis, às claras

ou em segredo. Horrenda cólera o encalça.

Há justiça. Das línguas sem pudor, Ate[4] cobra o preço.”

Assim falavam os Dânaos[5]. Mas ainda zangado no ânimo

O animoso Pelida tal palavra proferiu:

“Jaz no pó agora, olvidado de teus desatinos.

Não cabe ao vil medir-se com homem mais forte.

Antes também o peito paciente de Odisseu

provocaste duramente, lançando mil censuras.

Mas o Pelida não é igual a ele. Tirei-te a vida,

sem nem mesmo pesar minha mão

no golpe. Destino sem mel eclipsou-te.

Por tua debilidade perdeste a vida. Deixa para trás

os Aqueus[6] e vai entre mortos proferir teus impropérios”.

Assim falou o destemido filho do Eácida[7] valente.

[Tradução de Rafael Brunhara]

[1] Uma das muitas designações para os Gregos.

[2] O filho de Peleu, Aquiles.

[3] Pátroclo morre na Ilíada e desencadeia em seu companheiro Aquiles uma ira descomunal contra Heitor e os troianos.

[4] Ate, a personificação da ruína e da Perdição.

[5] Assim como Argivos, é outro nome para os Gregos.

[6] Argivos, Dânaos e Aqueus são os nomes utilizados para referir-se aos gregos dos tempos homéricos. É um ato de loucura, provocado pela hýbris, a desmedida, que leva o indivíduo à destruição.

[7] O neto de Éaco. Refere-se a Peleu, pai de Aquiles.

Rafael Brunhara

Professor de língua e literatura grega na UFRGS. Tradutor de poesia grega antiga.